O alvorecer do século XVIII encontra
os vales e chapadas do Norte piauiense já submetidos a forte devassamento por
parte do elemento branco e, este, em desigual conflito com o gentio nativo das
diversas nações tapuias ali existentes. Relatos dos poucos cronistas que versam
sobre a época, a exemplo de F. A. Pereira da Costa (Cronologia Histórica do Estado do Piauhy,
1909), noticiam que essa ocupação ocorre desde o último quartel do século XVII,
tendo como marco referencial a expedição exploratória comandada por João
Velho do Valle, pelos idos de 1685. Nessa empreitada, as várzeas do Pirac’ruca (rio do peixe que ronca) são percorridas,
no sentido foz-nascente, com o objetivo de estabelecer um caminho alternativo
entre a sede da capitania do Maranhão
e a missão jesuítica da Ibiapaba. Tais
historiadores também registram que, desde período anterior a 1701, posseiros já
travam ferozes batalhas contra os verdadeiros donos da terra - Tremembés, Alongases,
Tocarijus e Tabajaras, dentre muitos - tendo, como resultado, a dizimação
desses povos do território em questão.
Entre os anos de 1718 e 1722,
possivelmente, a vida da pequena povoação é alterada, de forma significativa,
com o início da construção de magnífico templo, consagrado à Virgem
do Monte do Carmo, que, segundo a tradição local, tem como construtores
os irmãos portugueses Manoel e José Dantas Correia, em
cumprimento de uma intenção oblativa. A fantástica epopéia dos Dantas
Correia é assim descrita pelo historiador piracuruquense Anísio
Brito, em “O Piauhy no Centenário
de sua Independência” (1922):
“Dois
portugueses – Manoel Dantas Correia e José Dantas Correia, em princípios do
século XVIII, se internaram nos sertões piauienses, explorando o vasto
território da então capitania ainda sem autonomia. Riquíssimos, os dois
aventureiros, depois de muito andarem e sem que receassem perigos sem conta que
lhes poderia sobrevir, caíram inesperadamente em mãos dos selvagens que o
aprisionaram. Eram índios antropófagos, habitantes do litoral, e, logo os dois
prisioneiros consideraram sobre a miserável sorte a que eram destinados,
prisioneiros que estavam, daqueles bárbaros. Na emergência, desenhando-se-lhe
na imaginação o momento lúgubre em que iriam servir de repasto, sem outro
recurso para reaver a suspirada liberdade, volveram-se aos braços consoladores
e, às vezes, infalíveis, da fé: fizeram um voto a N. S. do Carmo de lhe
mandarem construir majestoso templo, naquele local, onde se achavam
prisioneiros, se a excelsa virgem lhe salvasse a vida. A virgem operou o
milagre: recuperaram a liberdade os irmãos Dantas. E a construção do templo
teve início (...), sendo a mais suntuosa, mais bela, mais bem construída e mais
estética do Piauí”.
A edificação suntuosa, dedicada a Nossa
Senhora do Carmo, em Piracuruca,
se apóia, ainda hoje, apenas na curiosa, porém precária, lenda de fé votiva dos
Dantas.
Por não serem conhecidos documentos que explicitem e justifiquem um empreendimento
de tal monta, o fato prossegue envolto em mistério - qual o enigma da Esfinge -
desafiando o esforço de pesquisadores em História do Piauí no século XVIII. Afinal,
quem são os irmãos Manoel e José Dantas Correia? São eles, de
fato, os verdadeiros responsáveis pela construção do templo? Qual será a real motivação
dos construtores? Apenas religiosa? Econômica? Política? Com referência aos supostos
benfeitores, dentre as parcas informações disponíveis encontra-se o solene testamento
de Manoel
Dantas Correia, assentado no Livro de Registro de Testamentos do
Cartório da então Villa de São João da
Parnaíba, em data de 04.01.1800, em que declara ser a Virgem do Carmo, padroeira
da freguesia de Piracuruca, sua única e universal herdeira. Prosseguindo as
buscas pela origem, permanência e destino dos irmãos Dantas, algumas
evidências, no campo da Genealogia, sugerem uma suposta parentela com o
tenente-coronel Caetano Dantas Correia (1710-1797), progenitor dos fundadores de
Carnaúba dos Dantas (RN), porém sem a devida comprovação.
A
confiança na intercessão piedosa da Virgem
do Monte do Carmo para minorar o sofrimento de seus diletos filhos, inaugurada
a partir da ação de religiosos e bandeirantes em terras do Norte do Piauí - exemplos
do padre João da Costa Pereira
e dos irmãos Manoel e José Dantas Correia, dentre
outros - é representada, ainda no século XXI, nos novenários e quermesses em
louvor à Mãe de Jesus. Na Piracuruca,
os festejos acontecem entre os dias 06 e 16 de julho, período em que para ali afluem
milhares de fiéis, entre membros da sociedade local e visitantes de municípios
e Estados vizinhos. Nesses dias, sob forte emoção, a multidão devota canta, em
coro, o belo “Hino da Padroeira”, cuja letra, de autoria consignada ao
monsenhor Benedicto Cantuária de
Almeida e Sousa, encerra a estrofe: “Oh! glória de nossa Terra, do
Carmelo nívea flor; dos bons Piracuruquenses, Tu terás sempre o louvor!”. A
propósito do evento em tela, há um enorme potencial para desenvolvimento do
turismo histórico e religioso em Piracuruca e região, ainda praticamente
inexplorado, que aguarda os necessários incentivo e investimento, por parte dos
governos e do empresariado do setor.
Apesar de situações e problemas de
diversas ordens, vivenciados, ao longo de quase trezentos anos, pelos vários
administradores do patrimônio de Nossa
Senhora do Carmo de Piracuruca e pela comunidade católica local, o
templo secular, hoje tombado pelo Patrimônio Histórico e Artístico da União,
permanece relativamente bem preservado, dando mostras de que continuará a
oferecer às futuras gerações de piauienses o seu legado inconteste de fé, símbolo
da bravura e determinação de homens por sertões inóspitos, desde os primitivos tempos
da colonização do Nordeste do Brasil.
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Publicado em:
Revista PiauíTUR, edição nº 01, ano I,
julho/2009, páginas 16-19, ABIH - Associação Brasileira da Indústria de Hotéis - Seção do Piauí.
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