quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Sob o signo da fé




            O alvorecer do século XVIII encontra os vales e chapadas do Norte piauiense já submetidos a forte devassamento por parte do elemento branco e, este, em desigual conflito com o gentio nativo das diversas nações tapuias ali existentes. Relatos dos poucos cronistas que versam sobre a época, a exemplo de F. A. Pereira da Costa (Cronologia Histórica do Estado do Piauhy, 1909), noticiam que essa ocupação ocorre desde o último quartel do século XVII, tendo como marco referencial a expedição exploratória comandada por João Velho do Valle, pelos idos de 1685. Nessa empreitada, as várzeas do Pirac’ruca (rio do peixe que ronca) são percorridas, no sentido foz-nascente, com o objetivo de estabelecer um caminho alternativo entre a sede da capitania do Maranhão e a missão jesuítica da Ibiapaba. Tais historiadores também registram que, desde período anterior a 1701, posseiros já travam ferozes batalhas contra os verdadeiros donos da terra - Tremembés, Alongases, Tocarijus e Tabajaras, dentre muitos - tendo, como resultado, a dizimação desses povos do território em questão.

             As concessões de datas de sesmarias na região, que sucedem a ocupação da terra, têm seus registros primários expedidos ainda nas duas primeiras décadas. Dentre os sesmeiros encontra-se o padre João da Costa Pereira, considerado um dos conquistadores e primitivos povoadores dos sertões do Piauí, recebendo, em 1715, carta de sesmaria do Sítio Nossa Senhora da Vitória.  Assim, é provável que a planície que se descortina cerca de trinta léguas abaixo da nascente do rio Piracuruca, em terras da sesmaria Sítio, já desenvolva um pequeno núcleo populacional no início do século, tendo como ponto essencial uma singela capela, nascedouro da futura freguesia.

            Entre os anos de 1718 e 1722, possivelmente, a vida da pequena povoação é alterada, de forma significativa, com o início da construção de magnífico templo, consagrado à Virgem do Monte do Carmo, que, segundo a tradição local, tem como construtores os irmãos portugueses Manoel e José Dantas Correia, em cumprimento de uma intenção oblativa. A fantástica epopéia dos Dantas Correia é assim descrita pelo historiador piracuruquense Anísio Brito, em “O Piauhy no Centenário de sua Independência” (1922):
 
“Dois portugueses – Manoel Dantas Correia e José Dantas Correia, em princípios do século XVIII, se internaram nos sertões piauienses, explorando o vasto território da então capitania ainda sem autonomia. Riquíssimos, os dois aventureiros, depois de muito andarem e sem que receassem perigos sem conta que lhes poderia sobrevir, caíram inesperadamente em mãos dos selvagens que o aprisionaram. Eram índios antropófagos, habitantes do litoral, e, logo os dois prisioneiros consideraram sobre a miserável sorte a que eram destinados, prisioneiros que estavam, daqueles bárbaros. Na emergência, desenhando-se-lhe na imaginação o momento lúgubre em que iriam servir de repasto, sem outro recurso para reaver a suspirada liberdade, volveram-se aos braços consoladores e, às vezes, infalíveis, da fé: fizeram um voto a N. S. do Carmo de lhe mandarem construir majestoso templo, naquele local, onde se achavam prisioneiros, se a excelsa virgem lhe salvasse a vida. A virgem operou o milagre: recuperaram a liberdade os irmãos Dantas. E a construção do templo teve início (...), sendo a mais suntuosa, mais bela, mais bem construída e mais estética do Piauí”.                 

             Em aditamento à lenda, e ainda conforme domínio popular, os irmãos Dantas, quando do retorno à região do milagre para a execução da obra, teriam cometido equivoco quanto à exata localização do compromisso, iniciando as fundações a alguns quilômetros rio abaixo. Eis que a bela representação da Virgem do Monte Carmelo - trazida de Portugal e mantida em oratório provisório no acampamento – não aguarda o término de sua morada definitiva passivamente. Conta-se que, por diversas noites seguidas, com o intuito de apontar o erro de seus devotos construtores, a imagem da Santa desaparece de seu altar improvisado, indo postar-se sobre a rusticidade de um tronco de carnaubeira, no local correto. Convencidos, enfim, pela Virgem, de seu engano, os Dantas abandonam aqueles primeiros alicerces, já bastante adiantados, e constroem o magnífico templo no lugar indicado.

            O ano de 1743 marca, segundo a tradição oral, o falecimento de Manoel Dantas Correia, e pode, também, coincidir com o término dos serviços da elevação das paredes do templo. Um escrito atribuído a Josias de Morais Melo, reproduzido por Cláudio Melo em “Fé e Civilização”, atesta que, por volta de 1750, a Igreja de Nossa Senhora do Carmo de Piracuruca, edificação de 30 metros de comprimento por 18 de largura, encontra-se com reboco, mas ainda sem as torres, existindo, até então, apenas os corruchéus. Ainda segundo Melo, compõe sua ornamentação elegantes colunas de pedras lavradas, formando, na entrada, um belo peristilo. Internamente, a construção é toda forrada com obra de talha e parte do teto existente e o altar-mor são dourados. É composta, além da nave principal, de três capelas, com cinco altares, elegantes e artisticamente dispostos, que se distinguem pela escultura, pintura e obras de talha, bem como diversos outros objetos valiosos e de grande importância artística. Destacam-se, dentre outros, a pia batismal, o púlpito, um lavatório de mármore, lâmpadas de prata e muitas outras alfaias e paramentos, merecedores de registro. Incluído por Jureni Machado Bitencourt, em “Apontamentos Históricos da Piracuruca” (1989), um relatório assinado por Antônio José Morais Durão, então ouvidor do Piauí, com data de 1772, sob o título “Relação de Todas as Fazendas, Sítios e Pessoas Que Nesta Capitania Há”, informa que: “(...) o templo é de pedra de cantaria, assaz magnífico” e, ainda, que “(...) fez de despesa quase duzentos mil cruzados, porém está sem uso e a descoberto”. Com base nas informações de Durão, convém deduzir que a Igreja permaneça sem o teto por cerca de trinta anos.                    

            A edificação suntuosa, dedicada a Nossa Senhora do Carmo, em Piracuruca, se apóia, ainda hoje, apenas na curiosa, porém precária, lenda de fé votiva dos Dantas. Por não serem conhecidos documentos que explicitem e justifiquem um empreendimento de tal monta, o fato prossegue envolto em mistério - qual o enigma da Esfinge - desafiando o esforço de pesquisadores em História do Piauí no século XVIII. Afinal, quem são os irmãos Manoel e José Dantas Correia? São eles, de fato, os verdadeiros responsáveis pela construção do templo? Qual será a real motivação dos construtores? Apenas religiosa? Econômica? Política? Com referência aos supostos benfeitores, dentre as parcas informações disponíveis encontra-se o solene testamento de Manoel Dantas Correia, assentado no Livro de Registro de Testamentos do Cartório da então Villa de São João da Parnaíba, em data de 04.01.1800, em que declara ser a Virgem do Carmo, padroeira da freguesia de Piracuruca, sua única e universal herdeira. Prosseguindo as buscas pela origem, permanência e destino dos irmãos Dantas, algumas evidências, no campo da Genealogia, sugerem uma suposta parentela com o tenente-coronel Caetano Dantas Correia (1710-1797), progenitor dos fundadores de Carnaúba dos Dantas (RN), porém sem a devida comprovação.           

             Entre os já distantes anos de meados do século XVIII e os dias atuais o templo mariano de Piracuruca passa por diversos serviços de recuperação, manutenção e modificações estéticas internas. Em documento manuscrito atribuído a Paulo Thedim Barreto (arquivo da SPHAN), mencionado por Maria do Carmo Fortes de Brito, em “Remexendo o Baú” (2003), lê-se que, em 1801, o teto do prédio desaba. Seus administradores obrigam-se a dispor à venda uma das fazendas do patrimônio da Santa, àquela época, para acorrer à necessária recuperação. Naquela ocasião, são substituídas as linhas das tesouras por tirantes de ferro. Em 1912, parte do altar-mor e o forro da capela caem por terra. No período compreendido entre 1920 e 1935, diversos outros serviços são realizados, incluindo-se alterações no revestimento interior, mudança do piso e a inclusão, no panteão, de novos altares e imagens. Mais recentemente, em meados de 2000, em face do desgaste natural, o teto da Igreja necessita, mais uma vez, ser substituído. Desta feita, sob a coordenação providencial da Secretaria Municipal de Cultura, em convênio com o Ministério da Cultura, a obra é realizada a contento.
  
            A confiança na intercessão piedosa da Virgem do Monte do Carmo para minorar o sofrimento de seus diletos filhos, inaugurada a partir da ação de religiosos e bandeirantes em terras do Norte do Piauí - exemplos do padre João da Costa Pereira e dos irmãos Manoel e José Dantas Correia, dentre outros - é representada, ainda no século XXI, nos novenários e quermesses em louvor à Mãe de Jesus. Na Piracuruca, os festejos acontecem entre os dias 06 e 16 de julho, período em que para ali afluem milhares de fiéis, entre membros da sociedade local e visitantes de municípios e Estados vizinhos. Nesses dias, sob forte emoção, a multidão devota canta, em coro, o belo “Hino da Padroeira”, cuja letra, de autoria consignada ao monsenhor Benedicto Cantuária de Almeida e Sousa, encerra a estrofe: “Oh! glória de nossa Terra, do Carmelo nívea flor; dos bons Piracuruquenses, Tu terás sempre o louvor!”. A propósito do evento em tela, há um enorme potencial para desenvolvimento do turismo histórico e religioso em Piracuruca e região, ainda praticamente inexplorado, que aguarda os necessários incentivo e investimento, por parte dos governos e do empresariado do setor.                    
  
             Apesar de situações e problemas de diversas ordens, vivenciados, ao longo de quase trezentos anos, pelos vários administradores do patrimônio de Nossa Senhora do Carmo de Piracuruca e pela comunidade católica local, o templo secular, hoje tombado pelo Patrimônio Histórico e Artístico da União, permanece relativamente bem preservado, dando mostras de que continuará a oferecer às futuras gerações de piauienses o seu legado inconteste de fé, símbolo da bravura e determinação de homens por sertões inóspitos, desde os primitivos tempos da colonização do Nordeste do Brasil.
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Publicado em:
Revista PiauíTUR, edição nº 01, ano I, julho/2009, páginas 16-19, ABIH - Associação Brasileira da Indústria de Hotéis - Seção do Piauí.

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