sábado, 21 de janeiro de 2012

O histórico 22 de janeiro de 1823


A data de 22 de janeiro, na cidade de Piracuruca, por sua reconhecida importância, passou a integrar o calendário oficial das comemorações alusivas ao processo de adesão do Piauí à Independência do Brasil, por força do Decreto nº 12.824, exarado pelo Governo do Estado do Piauí, a 19 de outubro de 2007.
Quando o grito do Ipiranga, bradado a 07 de setembro de 1822, ecoou por todo o território brasileiro, encontrou algumas províncias - Bahia, Piauí, Maranhão, Pará e Cisplatina - em situações políticas e militares no contraponto dos ideais de independência, defendidos pela maioria. Deve-se fazer constar, a bem da verdade, que, já há alguns anos, por conta de querelas regionais, as representações dessas províncias junto às Cortes Gerais de Lisboa vinham se posicionando, de forma sistemática, a favor dos interesses portugueses, contrárias, assim, às causas nacionais. A esse respeito, o historiador e religioso campomaiorense Joaquim Chaves escreveu que
Há muito que a posição geográfica do Piauí havia despertado a atenção do governo de Lisboa, para o caso de uma emergência. Prevendo que a independência do Brasil seria apenas uma questão de tempo, [...] o governo português planejara ficar com uma parte para ele, isto é, o norte, recriando o Estado do Maranhão que compreenderia as províncias do Pará, do Maranhão e do Piauí.
Por aquele ano de 1822, a Província do Piauí se achava administrada por uma junta de governo fiel a Portugal, eleita a 07 de abril. Compunha essa junta Matias Pereira da Costa (presidente), Francisco de Sousa Mendes e Joaquim de Sousa Martins. No posto de governador das armas se encontrava o sargento-mor João José da Cunha Fidié, nomeado por Carta Régia datada de 09 de dezembro de 1821.
Na então Villa da Parnaíba, seus principais líderes políticos e militares, contrariando o governo de Oeiras, decidiram por manifestar adesão ao movimento separatista, a 19 de outubro de 1822. No rol dos insurgentes parnaibanos, achavam-se, dentre outros, o rico fazendeiro e coronel Simplício Dias da Silva (1773-1829), o juiz de fora João Cândido de Deus e Silva (1787-1860), o tenente Joaquim Timóteo de Brito, o coronel José Francisco de Miranda Osório, Antônio Raimundo Dias de Seixas e Silva (?-1842) e o alferes Leonardo de Carvalho Castelo Branco. Sobre Leonardo, o biógrafo Edgardo Pires Ferreira, em “Os Castello Branco: a mística do parentesco” (2008, p. 24-27) atesta ter ele nascido na Fazenda Taboca, então município de Parnaíba (hoje, município de Esperantina), em 1789, filho do casal Miguel de Carvalho e Silva e Ana Rosa Clara Castelo Branco.
O governo da Província, tomando conhecimento da sublevação ocorrida na Villa da Parnaíba, providenciou o deslocamento de Fidié rumo ao norte, à frente de seu Batalhão de 1ª Linha e da Tropa Miliciana, com a finalidade de sufocar o movimento. A corporação portuguesa alcançou a Villa de Campo Maior a 25 de novembro. Chegou à povoação de Piracuruca a 12 de dezembro, ali permanecendo um dia para o descanso das tropas. A 18 de dezembro, sem receber resistência, o comandante português entrou em Parnaíba, em face de os principais líderes independentes locais, por se acharem despreparados militarmente, já terem se refugiado em terras cearenses.
Deixando os demais companheiros em Granja, Leonardo Castelo Branco e Miranda Osório se dirigiram para Sobral, onde conseguiram arregimentar um contingente de cerca de seiscentos homens. Dividindo a força em dois destacamentos e assumindo, cada um, seus respectivos comandos, os dois líderes iniciaram marcha de retorno às terras do norte do Piauí, adotando a estratégia de Miranda Osório seguir direto para a Villa de Campo Maior e de Leonardo Castelo Branco tangenciar pela povoação de Piracuruca. Assim, nas primeiras horas do dia 22 de janeiro de 1823, quarta-feira, Leonardo Castelo Branco tomou Piracuruca sem maiores resistências, aprisionando o pequeno pelotão de soldados ali deixados por Fidié, quando da sua passagem. Consta, ainda, que, ao cair da tarde do mesmo dia, o ardoroso patriota reuniu a população local em frente ao templo consagrado à Virgem do Monte do Carmo, procedendo, solenemente, a leitura de manifesto da sua própria lavra, em que proclamava a independência brasileira em território piauiense. O ilustre historiador piracuruquense Anísio de Britto Mello transcreveu o referido documento nas páginas de sua obra “O Piauhy no Centenário de sua Independência” (1922), da qual são extraidos alguns excertos:
Queridos irmãos que habitais as fecundas margens do caudaloso Parnaíba, por um e outro lado, dignai-vos atender às sinceras vozes de um Patrício vosso, que, todo, unicamente se dedica ao vosso bem presente e ainda mesmo no futuro.
Até quando malignas e espessas nuvens ofuscam as luzes do vosso entendimento, pois vós sois brasileiros, e recusais obedecer ao Sr. Dom Pedro, Imperador Constitucional e seu Perpétuo Defensor?
Não sois europeus e seguis o seu partido com perigo evidente da nossa vida e com perda da honra. Ah! Onde estão o brio e o patriotismo brasilieses; onde a honra e onde o dever?
O meu coração se vê dilacerado pelo punhal da mais intensa dor!
Irmãos, irmãos! Quereis ter a doçura que a força exigia de vós e por violência obtenha o que o dever, a honra e o patriotismo em vão, até agora, vos tem tão instante e cordialmente persuadido! A dor me embarga as vozes do sentimento, apenas respiro.
Quereis que a vossa adesão à nossa santa e comum causa seja da força! Pois sereis satisfeitos, - Ei-la: ela se apresenta. Um pé de exército de quatro a seis mil homens vai fazer o mesmo em Campo Maior; há mais um corpo de observação para conter o inimigo, a quem inquieta com contínuas correrias pela costa. Todos eles trazem os petrechos de guerra e várias peças de campanha, que tornam mais terríveis suas forças. Além desses corpos, um batalhão ligeiro de índios e brancos de mais de 600 praças, destinado a cortar as relações do inimigo com o sul da província, ali plantou o seu quartel comandante pela voluntária reunião dos povos circunvizinhos.
No curto espaço de três dias tem visto crescer o duplo de seus soldados.
Obtida a possível reunião dessas forças mencionadas, seguros da vitória, marcharemos alegres a desalojar o nosso tirano déspota do seu último mal seguro asilo...
[...] Concluída esta expedição, o que esperamos em brevíssimos dias, a não termos mais que fazer, exultando de gosto por sermos instrumentos da liberdade de nossos irmãos, cantando alegres hinos ao Senhor Deus dos Exércitos, entre os vivas e aclamações, ufanos entraremos em nosso País natal cheios de uma nobre e gloriosa vaidade. Estes são os nossos desejos.
[...] Ah! Queridos e enganosos irmãos, que é o que temeis? E que é o que esperais? Temeis as forças do miserável Portugal esgotadas com as contínuas levas de soldados do sul do Brasil, onde todos têm sido sacrificados à deusa da Liberdade Brasiliense? Que esmaga suas cabeças com a mão armada do ferro com que pretendiam subjugar-nos?
[...] Dezesseis províncias, desde o além Prata até os limites ocidentais do Ceará, todas a uma só voz, proclamam a liberdade e prestam gostosa obediência a D. Pedro.
Não temeis essas forças, muito superiores às vossas, e, existentes no vosso próprio continente e confiantes e temeis as de Portugal tão remotas e apoucadas? Que estranha mania!
[...] Quanto aos exemplos de consciência que estes senhores e outros iguais nos metem, não é mais que um pretexto próprio só para se enganar gentes rudes que ignoram a natureza dos contratos e que eles obrigam.
[...] Que vos falta, pois, amados irmãos? Que vos impede os passos? Que vos prende a língua? Ai! Gritai comgo:
Viva a nossa santa religião!
Viva a futura Constituição Brasiliense!
Viva a D. Pedro I, Imperador Constitucional do Brasil e seu Perpétuo Defensor!
Viva a nossa santa Independência!
Vivam todos os Brasileiros honrados, briosos e intrépidos!
Quartel de Piracuruca, a 22 de janeiro de 1823.
Leonardo de Carvalho Castelo Branco
Alferes Secretário da Divisão Auxiliadora do Piauí.
A contextura política e militar piauiense, nos primeiros meses de 1823, agravada pelo acirramento dos ânimos das lideranças de ambos os lados, mais parecia os avanços e recuos das diferentes peças em um tabuleiro de xadrex, tamanhas as movimentações levadas a efeito. Depois de protagonizar a histórica proclamação junto ao povo piracuruquense - ato esse que se tornou emblemático para o desfecho das lutas – o sempre impulsivo Leonardo Castelo Branco, deixou parte dos seus comandados guarnecendo a povoação e rumou para Campo Maior, repetindo, ali, o mesmo manifesto, em data de 05 de fevereiro. Dois dias depois da proclamação em Piracuruca, a junta de governo da Província foi derrubada. Oeiras, finalmente, aderiu à Independência. Na Villa da Parnaíba, Fidié tomou conhecimento dos levantes ocorridos em Piracuruca, Oerias, Campo Maior e outras plagas piauienses, decidindo por retornar, imediatamente, à capital. O grupo de insurgentes que havia sido deixado em Piracuruca, no entanto, debandou de volta para o Ceará, com a chegada de notícias da aproximação da tropa de Fidié. Todo esse conjunto de fatores compôs o cenário sobre o qual se precipitaram o Embate da Lagoa do Jacaré, de forma preliminar, e, depois, a Batalha do Genipapo, ocorridos em 10 e 13 de março, respectivamente. Esses episódios, contudo, cada um em seu correspondente grau de importância, merecem ser contemplados, de forma específica, nos capítulos seguintes dessa História.
Há de se concluir, por fim, que a iniciativa do Governo Estadual de resgatar e valorizar o manifesto pela Independência do Brasil no Piauí, proferido por Leonardo de Carvalho Castelo Branco, na povoação de Piracuruca, a 22 de janeiro de 1823, bem como de conceder, em menção de reconhecimento, a Comenda da Ordem Estadual do Mérito Renascença do Piauí, a homens e mulheres que tenham se destacado, dentre outros feitos, na promoção da história, da literatura e da cultura local e regional, constituem-se em exemplos efetivos do quanto é possível e devido realizar, por agentes e instituições públicos, visando à manutenção dos lugares de memória de uma civilização, evidenciando a necessidade de estabelecer, como bem cultural e social do povo, o exercício da liberdade, da equidade e da democracia, em toda sua plenitude.


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Publicado em:
Jornal Acesso Real, coluna Calidoscópio Cultural; ano II; nº 06; de 16 a 31.01.2008 (primeira versão);
Sítio www.piracuruca.com, coluna “O Mermorista”; em 21.01.2008 (primeira versão).

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Doutor Manoel, a Ilustração em Piracuruca




                 Na madrugada de 13 de janeiro de 2012, sexta-feira, no leito de sua residência em Piracuruca, assistido pelo carinho de familiares e amigos mais próximos, o venerando Doutor Manoel expira de uma vida de quase noventa e seis anos. A sua passagem por este plano terreno poderá ser comparada à existência de um farol, de brilho intenso e forte, que, até aquele momento, cuidava em orientar os rumos de muitos dos seus conterrâneos. 
                  Oitavo filho do casal Joaquim de Cerqueira Machado e Ana Fortes de Almeida, Manoel Francisco de Cerqueira nasceu na Fazenda Baixa, município de Piracuruca, Piauí, a 11 de março de 1916. Contam em suas memórias que, quando do seu nascimento, a parteira assim profetizou: “Este menino não vai ser vaqueiro, vai ser dotô!”...

                 O ainda pequenino Manoel conheceu as primeiras letras e números com a professora Raimundinha, freqüentando uma escola pública, em Piracuruca. Já adolescente, completados dezessete anos, transferiu-se para Teresina, passando a estudar no Colégio Diocesano. Naquela instituição, iniciou o curso de preparação para o exame de admissão, ali permanecendo até o final do ginasial. Àqueles tempos, sonhava cursar Direito e seguir a carreira diplomática ou a magistratura. O destino, contudo, tinha para ele outros planos: seu irmão, João Fortes, conseguiu lhe convencer a estudar Farmácia e, dessa forma, poder ajudá-lo em Piracuruca. Assim é que Manoel ingressa na Faculdade de Farmácia da Universidade Federal do Ceará, cursando, ali, seu primeiro ano universitário. No período seguinte, transfere-se para Salvador, concluindo o curso pela Faculdade de Farmácia da Bahia, a 22 de dezembro de 1943.
Retornando à sua querida Piracuruca, Doutor Manoel iniciou seus trabalhos como farmacêutico e comerciante, adquirindo a farmácia de propriedade do senhor Zeca Machado.
Em cerimônia realizada a 11 de março de 1945, contraiu núpcias com Francisca Deusa de Melo, filha de Francisco Gomes do Amaral e de Avelina de Brito Melo.  Dessa união, nasceram as filhas Maria Teresa de Melo Cerqueira e Regina Maria de Melo Cerqueira.
Acreditando que, pela razão, o homem poderá conquistar a liberdade e a felicidade social e política, Doutor Manoel, o educador, o humanista, colaborou na formação de algumas gerações de piracuruquenses. Ainda na memória de muitos de seus alunos do então Ginásio Municipal de Piracuruca, estão latentes os magistais conhecimentos de História Universal e Brasileira, consubstanciados na obra de Victor Mussumeci, de capa a capa, que o brilhante mestre compartilha com bonomia. Nas entrelinhas, deixa-lhes a principal lição: o ponto de partida é o sujeito do conhecimento, com consciência de si, reflexiva, que depreende sua capacidade de conhecer.
A nobreza de propósitos e a firmeza de caráter do casal Manoel-Deusa assumem essencial importância nos rumos da sociedade de Piracuruca, entre os anos 40 e 70, principalmente, através do desenvolvimento de várias ações. Em 1961, juntamente com diversos outros cidadãos, Doutor Manoel fundou o Grêmio Recreativo Piracuruquense. Ainda nos anos 1960, participou decisivamente da implantação de clubes de serviço em Piracuruca, a exemplo do Lions Clube e do Rotary Clube.
No campo da filantropia, Doutor Manoel encabeçou diversos projetos, dentre os quais a construção do Posto de Puericultura (1951) e da Maternidade Irmãos Dantas (1955). Dona Deusa Cerqueira, em absoluta sintonia com os ideais humanitários do marido, dedicou-se, dentre outras atividades, ao funcionamento do Clube das Mães.
Na busca pela promoção do desenvolvimento local, Doutor Manoel, o produtor rural, o comerciante, superou uma controvérsia histórica entre fisiocracia e mercantilismo e assumiu a liderança do setor produtivo. Assim é que idealizou, juntamente com seus pares, a Associação Comercial, Agrícola e Industrial de Piracuruca, fundada oficialmente em 26 de julho de 1961. Prosseguindo na luta por avanços econômicos e sociais, ajudou na fundação do Sindicato Rural Patronal e, mais tarde, empenhou-se na criação do Sindicato de Trabalhadores Rurais.
A obstinação do Doutor Manoel de buscar o melhor para sua terra e sua gente, rende-lhe algum reconhecimento. Mediante a aprovação do Projeto de Lei nº 039/89, de 19 de dezembro de 1989, no ensejo das comemorações alusivas ao 100° aniversário de emancipação política de Piracuruca, Doutor Manoel é condecorado, juntamente com vários outros munícipes, em 28 de dezembro de 1989, com o “Diploma do Mérito Centenário”, em razão dos “relevantes serviços prestados, seu dignificante exemplo de servir à terra natal e pelo acréscimo de seu nome na promoção do desenvolvimento social, econômico e cultural de Piracuruca”.
Também em sessão solene, realizada a 10 de março de 2006, a Câmara Municipal de Piracuruca fez a entrega ao Doutor Manoel da “Medalha de Honra ao Mérito Legislativo”, pelos importantes serviços prestados à sociedade piracuruquense. No dia seguinte, 11 de março, a família lhe prestou homenagem com uma bela festa, em comemoração aos seus 90 anos. Àquela oportunidade, em meio às diversas manifestações de congratulação e agradecimento, sua filha Regina Cerqueira faz o lançamento da obra biográfica “Histórias que meu pai me conta”.
Em cerimônia realizada no Grêmio Recreativo, em 22 de janeiro de 2008, Doutor Manoel foi condecorado, pelas mãos do governador Wellington Dias, com a “Comenda da Ordem Estadual do Mérito Renascença do Piauí”, no grau de oficial.
Nem o mais completo e dignificante cabido de honrarias concedidas ao Doutor Manoel, que possa vir a ser composto, no entanto, fará jus ao seu precioso legado. Esse homem que, quando adolescente, chegou a pensar em servir à sua pátria através da interpretação das leis ou das relações internacionais, transformou sua profissão de farmacêutico e suas ações de homem público civil na personificação do melhor juízo de sua terra natal. Se “o homem é a medida de todas as coisas”, comforme consta do pensamento de Protágoras de Abdera (480-410 a. C.), não poderá haver melhor “medida”, mais abalizada referência, maior exemplo a ser seguido por homens e mulheres de Piracuruca que a vida do Doutor Manoel. Com efeito, em se considerando os procedimentos observados em tantas outras personalidades de seu tempo e de sua sociedade, o mérito maior do Doutor Manoel talvez se consubstancie na disponibilidade de prestar serviços à comunidade pelo simples ideal humanitário, imune a quaisquer vaidades de cargos, funções ou uso do poder, via estruturas político-partidárias.
Nas “Luzes”, acesas por Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), Voltaire (1694-1778), Denis Diderot (1713-1784) e tantos outros, entre meados do século XVIII e princípio do século XIX, serão encontrados os fundamentos de uma filosofia social que rejeita, com vigor, toda espécie de controle político que possa intervir sobre a racionalidade natural e física, bem como sobre as relações humanas, em especial as produtivas. Na Piracuruca do século XX, ergueu-se um farol, de luz vivaz e portentosa, que tinha como objetivo orientar para a razão, como fonte do conhecimento, e para a crítica a toda adesão obscurantista, na incessante busca pela plena realização do indivíduo. A memória ética ilustradora do Doutor Manoel deverá seguir se constituindo em balizador indispensável para a projeção de mudanças positivas na sociedade piracuruquense, tendo como principal função o desenvolvimento da ação humana organizada pela razão, pela vontade e pela expectativa de uma vida mais satisfatória.
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Publicado em:
Jornal Acesso Real; coluna “Calidoscópio Cultural”; Ano I; nº 10; de 01 a 15.04.2008; (primeira versão);
Sítio www.piracuruca.com; coluna “O Memorista”.   

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Sob o signo da fé




            O alvorecer do século XVIII encontra os vales e chapadas do Norte piauiense já submetidos a forte devassamento por parte do elemento branco e, este, em desigual conflito com o gentio nativo das diversas nações tapuias ali existentes. Relatos dos poucos cronistas que versam sobre a época, a exemplo de F. A. Pereira da Costa (Cronologia Histórica do Estado do Piauhy, 1909), noticiam que essa ocupação ocorre desde o último quartel do século XVII, tendo como marco referencial a expedição exploratória comandada por João Velho do Valle, pelos idos de 1685. Nessa empreitada, as várzeas do Pirac’ruca (rio do peixe que ronca) são percorridas, no sentido foz-nascente, com o objetivo de estabelecer um caminho alternativo entre a sede da capitania do Maranhão e a missão jesuítica da Ibiapaba. Tais historiadores também registram que, desde período anterior a 1701, posseiros já travam ferozes batalhas contra os verdadeiros donos da terra - Tremembés, Alongases, Tocarijus e Tabajaras, dentre muitos - tendo, como resultado, a dizimação desses povos do território em questão.

             As concessões de datas de sesmarias na região, que sucedem a ocupação da terra, têm seus registros primários expedidos ainda nas duas primeiras décadas. Dentre os sesmeiros encontra-se o padre João da Costa Pereira, considerado um dos conquistadores e primitivos povoadores dos sertões do Piauí, recebendo, em 1715, carta de sesmaria do Sítio Nossa Senhora da Vitória.  Assim, é provável que a planície que se descortina cerca de trinta léguas abaixo da nascente do rio Piracuruca, em terras da sesmaria Sítio, já desenvolva um pequeno núcleo populacional no início do século, tendo como ponto essencial uma singela capela, nascedouro da futura freguesia.

            Entre os anos de 1718 e 1722, possivelmente, a vida da pequena povoação é alterada, de forma significativa, com o início da construção de magnífico templo, consagrado à Virgem do Monte do Carmo, que, segundo a tradição local, tem como construtores os irmãos portugueses Manoel e José Dantas Correia, em cumprimento de uma intenção oblativa. A fantástica epopéia dos Dantas Correia é assim descrita pelo historiador piracuruquense Anísio Brito, em “O Piauhy no Centenário de sua Independência” (1922):
 
“Dois portugueses – Manoel Dantas Correia e José Dantas Correia, em princípios do século XVIII, se internaram nos sertões piauienses, explorando o vasto território da então capitania ainda sem autonomia. Riquíssimos, os dois aventureiros, depois de muito andarem e sem que receassem perigos sem conta que lhes poderia sobrevir, caíram inesperadamente em mãos dos selvagens que o aprisionaram. Eram índios antropófagos, habitantes do litoral, e, logo os dois prisioneiros consideraram sobre a miserável sorte a que eram destinados, prisioneiros que estavam, daqueles bárbaros. Na emergência, desenhando-se-lhe na imaginação o momento lúgubre em que iriam servir de repasto, sem outro recurso para reaver a suspirada liberdade, volveram-se aos braços consoladores e, às vezes, infalíveis, da fé: fizeram um voto a N. S. do Carmo de lhe mandarem construir majestoso templo, naquele local, onde se achavam prisioneiros, se a excelsa virgem lhe salvasse a vida. A virgem operou o milagre: recuperaram a liberdade os irmãos Dantas. E a construção do templo teve início (...), sendo a mais suntuosa, mais bela, mais bem construída e mais estética do Piauí”.                 

             Em aditamento à lenda, e ainda conforme domínio popular, os irmãos Dantas, quando do retorno à região do milagre para a execução da obra, teriam cometido equivoco quanto à exata localização do compromisso, iniciando as fundações a alguns quilômetros rio abaixo. Eis que a bela representação da Virgem do Monte Carmelo - trazida de Portugal e mantida em oratório provisório no acampamento – não aguarda o término de sua morada definitiva passivamente. Conta-se que, por diversas noites seguidas, com o intuito de apontar o erro de seus devotos construtores, a imagem da Santa desaparece de seu altar improvisado, indo postar-se sobre a rusticidade de um tronco de carnaubeira, no local correto. Convencidos, enfim, pela Virgem, de seu engano, os Dantas abandonam aqueles primeiros alicerces, já bastante adiantados, e constroem o magnífico templo no lugar indicado.

            O ano de 1743 marca, segundo a tradição oral, o falecimento de Manoel Dantas Correia, e pode, também, coincidir com o término dos serviços da elevação das paredes do templo. Um escrito atribuído a Josias de Morais Melo, reproduzido por Cláudio Melo em “Fé e Civilização”, atesta que, por volta de 1750, a Igreja de Nossa Senhora do Carmo de Piracuruca, edificação de 30 metros de comprimento por 18 de largura, encontra-se com reboco, mas ainda sem as torres, existindo, até então, apenas os corruchéus. Ainda segundo Melo, compõe sua ornamentação elegantes colunas de pedras lavradas, formando, na entrada, um belo peristilo. Internamente, a construção é toda forrada com obra de talha e parte do teto existente e o altar-mor são dourados. É composta, além da nave principal, de três capelas, com cinco altares, elegantes e artisticamente dispostos, que se distinguem pela escultura, pintura e obras de talha, bem como diversos outros objetos valiosos e de grande importância artística. Destacam-se, dentre outros, a pia batismal, o púlpito, um lavatório de mármore, lâmpadas de prata e muitas outras alfaias e paramentos, merecedores de registro. Incluído por Jureni Machado Bitencourt, em “Apontamentos Históricos da Piracuruca” (1989), um relatório assinado por Antônio José Morais Durão, então ouvidor do Piauí, com data de 1772, sob o título “Relação de Todas as Fazendas, Sítios e Pessoas Que Nesta Capitania Há”, informa que: “(...) o templo é de pedra de cantaria, assaz magnífico” e, ainda, que “(...) fez de despesa quase duzentos mil cruzados, porém está sem uso e a descoberto”. Com base nas informações de Durão, convém deduzir que a Igreja permaneça sem o teto por cerca de trinta anos.                    

            A edificação suntuosa, dedicada a Nossa Senhora do Carmo, em Piracuruca, se apóia, ainda hoje, apenas na curiosa, porém precária, lenda de fé votiva dos Dantas. Por não serem conhecidos documentos que explicitem e justifiquem um empreendimento de tal monta, o fato prossegue envolto em mistério - qual o enigma da Esfinge - desafiando o esforço de pesquisadores em História do Piauí no século XVIII. Afinal, quem são os irmãos Manoel e José Dantas Correia? São eles, de fato, os verdadeiros responsáveis pela construção do templo? Qual será a real motivação dos construtores? Apenas religiosa? Econômica? Política? Com referência aos supostos benfeitores, dentre as parcas informações disponíveis encontra-se o solene testamento de Manoel Dantas Correia, assentado no Livro de Registro de Testamentos do Cartório da então Villa de São João da Parnaíba, em data de 04.01.1800, em que declara ser a Virgem do Carmo, padroeira da freguesia de Piracuruca, sua única e universal herdeira. Prosseguindo as buscas pela origem, permanência e destino dos irmãos Dantas, algumas evidências, no campo da Genealogia, sugerem uma suposta parentela com o tenente-coronel Caetano Dantas Correia (1710-1797), progenitor dos fundadores de Carnaúba dos Dantas (RN), porém sem a devida comprovação.           

             Entre os já distantes anos de meados do século XVIII e os dias atuais o templo mariano de Piracuruca passa por diversos serviços de recuperação, manutenção e modificações estéticas internas. Em documento manuscrito atribuído a Paulo Thedim Barreto (arquivo da SPHAN), mencionado por Maria do Carmo Fortes de Brito, em “Remexendo o Baú” (2003), lê-se que, em 1801, o teto do prédio desaba. Seus administradores obrigam-se a dispor à venda uma das fazendas do patrimônio da Santa, àquela época, para acorrer à necessária recuperação. Naquela ocasião, são substituídas as linhas das tesouras por tirantes de ferro. Em 1912, parte do altar-mor e o forro da capela caem por terra. No período compreendido entre 1920 e 1935, diversos outros serviços são realizados, incluindo-se alterações no revestimento interior, mudança do piso e a inclusão, no panteão, de novos altares e imagens. Mais recentemente, em meados de 2000, em face do desgaste natural, o teto da Igreja necessita, mais uma vez, ser substituído. Desta feita, sob a coordenação providencial da Secretaria Municipal de Cultura, em convênio com o Ministério da Cultura, a obra é realizada a contento.
  
            A confiança na intercessão piedosa da Virgem do Monte do Carmo para minorar o sofrimento de seus diletos filhos, inaugurada a partir da ação de religiosos e bandeirantes em terras do Norte do Piauí - exemplos do padre João da Costa Pereira e dos irmãos Manoel e José Dantas Correia, dentre outros - é representada, ainda no século XXI, nos novenários e quermesses em louvor à Mãe de Jesus. Na Piracuruca, os festejos acontecem entre os dias 06 e 16 de julho, período em que para ali afluem milhares de fiéis, entre membros da sociedade local e visitantes de municípios e Estados vizinhos. Nesses dias, sob forte emoção, a multidão devota canta, em coro, o belo “Hino da Padroeira”, cuja letra, de autoria consignada ao monsenhor Benedicto Cantuária de Almeida e Sousa, encerra a estrofe: “Oh! glória de nossa Terra, do Carmelo nívea flor; dos bons Piracuruquenses, Tu terás sempre o louvor!”. A propósito do evento em tela, há um enorme potencial para desenvolvimento do turismo histórico e religioso em Piracuruca e região, ainda praticamente inexplorado, que aguarda os necessários incentivo e investimento, por parte dos governos e do empresariado do setor.                    
  
             Apesar de situações e problemas de diversas ordens, vivenciados, ao longo de quase trezentos anos, pelos vários administradores do patrimônio de Nossa Senhora do Carmo de Piracuruca e pela comunidade católica local, o templo secular, hoje tombado pelo Patrimônio Histórico e Artístico da União, permanece relativamente bem preservado, dando mostras de que continuará a oferecer às futuras gerações de piauienses o seu legado inconteste de fé, símbolo da bravura e determinação de homens por sertões inóspitos, desde os primitivos tempos da colonização do Nordeste do Brasil.
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Publicado em:
Revista PiauíTUR, edição nº 01, ano I, julho/2009, páginas 16-19, ABIH - Associação Brasileira da Indústria de Hotéis - Seção do Piauí.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Fenícios em Sete Cidades, segundo Ludovico "Chovenágua"


            O conjunto de monumentos naturais em rochas areníticas, moldado pela ação erosiva plúvio-diferencial ao cabo de vários milhões de anos, que recebe a denominação Sete Cidades pela separação casual das pedras em sete blocos distintos, compõe, hoje, o parque nacional de mesmo nome, incrustado em terras dos atuais municípios de Piracuruca e de Brasileira, no Norte do Piauí. Esse aglomerado lítico, de aspecto colossal, desperta a curiosidade e a imaginação da grande maioria de seus visitantes e muitas são as estórias que têm inspiração naquele ambiente inusitado e misterioso. Essa literatura vai desde simples lendas populares, desenvolvidas pelos antigos moradores da região e transmitidas oralmente, até hipóteses bem articuladas, como a formulada pelo francês Jacques Mahieu, (“Os Vikings no Brasil”, 1976), passando, dentre outras, pelas descrições de Jácome Avelino (“Cidade Petrificada no Piauí”, 1886) ou de Erich von Daniken, (“Semeadura e Cosmo”, 1973). Mas, nada se compara à tese defendida por Ludwig Schwennhagen, que relata a estada de navegantes fenícios em terras brasileiras, há mais de 3.000 anos atrás.
            Desde há muito se discute não se constituir primazia das esquadras de Cristóvão Colombo, em 1.492, e de Pedro Álvares Cabral, em 1.500, o descobrimento de terras a oeste do continente europeu, estes na tentativa de encontrar um caminho marítimo para as Índias. Já na antiguidade há relatos de viagens em busca de terras e civilizações para além das “Colunas de Hércules”, como a descrição de Platão (429-347 a.C.), no mito cosmogônico “Timeu e Crítias”, para a lendária ilha de Atlântida. Por volta do século I a.C., também o grego Diodoro, em sua “História Universal”, menciona a existência de tais terras. Os romanos, por sua vez, empreendem buscas pela “Insula Septem Civitatum” (Ilha das Sete Cidades), como comprova um escrito em latim, encontrado em Porto-Cale (atual cidade do Porto, Portugal), datado de 740 d.C. No ano de 1.473, o navegador açoriano Fernando Telles apresenta ao rei de Portugal, d. Afonso V, o mapa de um extenso litoral, que identifica como sendo da “Ilha das Sete Cidades”, recebendo, por Carta Régia, a doação da mesma, em 1.475. O referido mapa - que descreve, com riqueza de detalhes, a costa do atual Estado do Maranhão até o delta do rio Parnaíba - é referendado pelo matemático e geógrafo italiano Paolo Toscanelli. Com a morte de Teles, seu genro, Fernando Ulmo, associa-se a João Afonso de Estreito e consegue de d. João II, em 1.485, nova carta de doação e promessa de ajuda para explorar as “ilhas e terras firmes das Sete Cidades”. Há fortes indícios históricos de que Ulmo e seus companheiros aportaram na costa brasileira por diversas vezes. Ao retornar de uma das suas viagens, ele teria declarado ao governo português: “A ilha das Sete Cidades é um grande país, com muitas ilhas e terras firmes, com uma antiga cidade de sete divisões”. 
            Em princípios do século XX, o austríaco Ludwig Schwennhagen, membro da Sociedade de Geografia Comercial de Viena, se embrenha por selvas do Norte e sertões do Nordeste brasileiros, à cata de subsídios para a formulação de uma surpreendente tese. Com efeito, no ano de 1928, Schwennhagen publica a primeira edição de sua “Antiga História do Brasil (de 1.100 a.C. a 1.500 d.C.)”, através da Imprensa Oficial do Piauí, cujos poucos exemplares, ainda existentes, são considerados raridades. A obra é reeditada pela Editora Cátedra, em parceria com o Governo do Estado do Piauí, nos anos de 1976 e 1986, com apresentação do romancista Moacir Costa Lopes. Nas páginas do livro, o pesquisador sustenta que navegadores fenícios, e, com eles, colonizadores de outras nações, estiveram em diversos pontos do Brasil, a partir de 1.100 a.C. Dentre as principais evidências dessa estada, a obra menciona diversas inscrições Brasil afora, tais como a encontrada no município de Pouso Alto, Paraíba, traduzida por Cyrus Gordon, da Brandeis University, Boston, EUA, onde informa a origem dos exploradores e descreve brevemente sua viagem: “Somos filhos de Canaã, de Sidon, a cidade do Rei. O comércio nos trouxe a esta distante praia, uma terra de montanhas. Sacrificamos uma jovem aos deuses e deusas exaltados no ano 19 do Hiran, nosso poderoso pai. Embarcamos em Ezion Geber, no Mar Vermelho e viajamos em dez navios. Permanecemos no mar, juntos, por dois anos em volta da terra pertencente a Ham, mas fomos separados por uma tempestade e afastamo-nos de nossos companheiros. E assim aportamos aqui, doze homens e três mulheres, numa nova praia que eu, almirante, controlo. Mas, auspiciosamente passam os exaltados deuses e deusas a interceder em nosso favor”. Na Pedra da Gávea, Rio de Janeiro, também há inscrições, que, decifrados os seus caracteres, registra: “Tiro, Fenícia, Badezir primogênito de Jethabaal”. A História dos povos antigos da Ásia corrobora vários dados acima apresentados: Sidon é uma antiga cidade da costa do mar Mediterrâneo; Hiran I (969-935 a.C.) é rei de Tiro, contemporâneo dos reis bíblicos Davi e Salomão; Ezion-Geber (hoje balneário de Eliat, Israel) é importante porto de entrada para a África e para o extremo Oriente, citado na Bíblia (Reis I, 9:26); Jethabaal reina na Fenícia no período de 887 e 856 a.C., e Badezir, seu filho e sucessor, entre 855 e 850 a.C.    
            Segundo afirma Schwennhagen, os fenícios, povo de origem semítica que ocupa o corredor Sírio - exímios marinheiros e comerciantes – fundam no litoral sul do Mediterrâneo, até o Atlântico, diversas cidades e feitorias, mantendo contatos de negócios com diversos outros povos. Dentre muitos, há relatos de uma célebre aliança entre Hiran e Salomão. Tendo descoberto, casualmente, a “Pindorama”, passam a explorá-la economicamente. Para viabilizar tal empreitada, estabelecem relações amistosas e intercâmbios com os primitivos habitantes da terra, possibilitando que dela possam extrair diversos materiais, ali encontradas em abundância, muitos dos quais já raros ou esgotados no velho mundo. Assim, exploram várias pedras e metais preciosos, bem como madeira-de-lei, que vendem aos hebreus para utilização na construção do lendário Templo de Jerusalém. Aos egípcios, dentre outros produtos, fornecem salitre, utilizado no processo de embalsamamento de seus mortos, e matéria-prima para manufatura de tecidos, vidros, etc.
            Conforme os escritos do notável professor - cujo nome germânico Schwennhagen é nordestinizado, jocosamente, para “Chovenágua” - os fenícios fazem uso de um porto marítimo natural, a que chamam Tutóia (possivelmente, uma alusão conjunta às antigas cidades de Tur e Tróia), de onde ingressam no delta do Parnaíba e passam a explorar a região que corresponde ao norte do Piauí, atualmente.  Por aquelas paragens, cerca de 180 km da foz, descobrem uma cidade, construída pela natureza, dividida em sete partes, a que batizam de Sete Cidades.  O local é escolhido para sediar uma escola de sacerdotes Piagas, originários do povo Cário, adoradores do deus “Pan” (possível origem do termo “Tupã” de nossos nativos). Os fenícios trazem esse grupo de magos da Ásia Menor, interessados que estavam na colonização das novas terras e no controle político e religioso de sua população. Assim, de acordo com “A Antiga História do Brasil”, o conjunto monumental petrificado das Sete Cidades, no “Piagüi” (terra dos Piagas), passa a sediar a “Ordem e o Congresso Nacional dos Povos Tupis”. No centro da “terceira cidade”, segundo a descrição do pesquisador, há um castelo, dividido em três partes: “O primeiro salão era o lugar do Congresso, isto é, da reunião dos delegados e deputados; o segundo salão era a sede do supremo morubixaba, isto é, o governador eleito como chefe de todas as tribos para um certo prazo; o terceiro, pátio amplo onde o Sumé, assistido pelos Piagas, administrava suas funções religiosas. Ali está a grande estátua do sacerdote chefe, de escultura primitiva, e, a um lado, vê-se a suposta biblioteca, um lote de pedras lisas e finas, cortadas simetricamente”.
            As incursões fenícias pelo continente americano só cessam, de acordo com “Chovenágua”, por volta de 146 a.C., com a destruição de Cartago pelos romanos. O historiador Heródoto - que registra a epopéia fenícia de circunavegação do continente africano - também relata viagens de cartagineses a um distante país, além dos oceanos. O declínio da civilização que se desenvolve sob a orientação da Ordem dos Sacerdotes Piagas, com sede nas Sete Cidades, se dá, provavelmente, em período posterior, motivado, dentre outros, por lutas visando o controle político e, ainda, por dificuldades de administração do extenso território, povoado por inúmeras etnias. As nações confederadas em torno da Ordem Cária acabam sendo dissipadas, estabelecendo-se diversos outros centros de poder. Nessa dispersão tupiniquim, os Tabajaras e outros grupos, por exemplo, se fixam entre o rio Parnaíba e a serra da Ibiapaba, na terra livre dos Tapuias. Os Tupinambás se estabelecem em vários pontos da região central e da Amazônia. A partir de então, esses inúmeros grupos iniciam um retrógrado e intermitente processo de divisões e fusões culturais, ao cabo de vários séculos, até a chegada das naus portuguesas, na costa da Bahia, em abril de 1.500.        
            Sobre Ludwig Schwennhagen e sua estada no Piauí, o escritor Moacir Lopes resgata alguma memória dos teresinenses, àquela época: “Por aqui passou esse alemão calmo e grandalhão que ensinava história e bebia cachaça nas horas de folga, andava estudando umas ruínas pelo Estado do Piauí e outros do Nordeste, e que chegou a Teresina no primeiro quartel deste século, não se sabe de onde, e morreu sem deixar rastro, não se sabe de quê, e andava rabiscando uns manuscritos sobre a origem da raça Tupi, lendo tudo o que era pedra espalhada por aí. Seu nome é tão complicado que muitos o chamavam Chovenágua. Também o escritor Vitor Gonçalves Neto, na dedicatória de seu livro “Roteiro das Sete Cidades” (1963), assim se refere: À memória de Ludovico Schwennhagen – professor de História e Filologia que, em maio de 1928, defendeu a tese meio absurda de que os fenícios foram os primeiros habitantes do Piauí. Em sua opinião, as Sete Cidades serviram de sede da Ordem e do Congresso dos povos tupis. Nasceu em qualquer lugar da velha Áustria de ante-guerras. Morreu talvez de fome aqui n’algum canto do Nordeste do Brasil. Orai por ele”. Mais adiante, quando da descrição da 2ª cidade, o autor transcreve a fala de um certo Assunção, seu companheiro de viagem, que diz: “Seu mano, sei que você nunca leu o Ludovico Schwennhagen. Foi um maluco que apareceu por estas bandas ao tempo do governo do hoje senador Matias Olimpio de Melo. Aproveitaram-no como professor de alemão no velho Liceu Piauiense e imprimiram sua ‘Antiga História do Brasil’ – de 1.100 antes de Jota Cristo até 1.500 de nossa era”.      
                        É com pesar que se constate não ter a tese do pesquisador austríaco chegado a adquirir a robustez necessária para o desenvolvimento de ações epígonas. Dessa forma, no curso das décadas que se sucedem à sua divulgação, a postulação histórica perde seu cunho científico e se transforma em relato mítico, curioso ou absurdo, apenas. Muito embora a publicação da “Antiga História do Brasil” esteja listada – no julgamento do jornalista Zózimo Tavares – entre os “100 Fatos do Piauí no Século XX” (2000), seu conteúdo permanece à margem dos compêndios oficiais brasileiro e piauiense. Pode-se entender que somente um grande movimento, encabeçado pela comunidade acadêmica da área, que objetive divulgar e discutir o tema, conseguirá suscitar o interesse das atuais e futuras gerações, e, em conseqüência, viabilizar a realização de novos estudos e pesquisas. Uma possível confirmação da presença fenícia na “Terra Brazilis”, além de provocar a revisão de parte da nossa História, fará, finalmente, justiça ao legado precioso de LudovicoChovenágua”.