No processo histórico das lutas pela adesão do Piauí à
Independência do Brasil, um fato tem significado ímpar, por estabelecer
o marco inaugural do confronto armado, na Província, entre independentes
piauienses, cearenses e maranhenses e tropas oficiais e milicianas portuguesas.
Esse episódio recebeu de pesquisadores e acadêmicos o título toponímico de “Embate
da Lagoa do Jacaré”.
A 19 de outubro de 1822, a então Vila da Parnaíba
decide por declarar apoio à independência brasileira, sob as lideranças de Simplício
Dias da Silva e João Cândido de Deus e Silva, dentre
outros. Quando a notícia chega à capital da Província, Oeiras, a Junta
de Governo Provisório delibera pelo envio do Governador das Armas João
José da Cunha Fidié, com a missão de sufocar o movimento,
imediatamente.
O
militar português que carrega, em seu currículo, brilhante participação nas Guerras
Napoleônicas, parte de Oeiras a 13 de novembro, à frente de tropas
de 1ª e 2ª linhas, composta por cerca de 380 praças, integrantes do 1º
Regimento de Cavalaria Auxiliar e do Batalhão de Infantaria da Guarnição
da Capital. Além das forças militares, muitos corpos de milícia vão sendo organizados
pelo caminho e, ainda, diversos outros são arregimentados junto à contígua Província
do Maranhão. Cumprindo o trajeto entre a capital e a Vila sublevada,
o contingente luso chega a Campo Maior em 25 de novembro, ali
permanecendo alguns dias. Prossegue seu percurso, alcançando a povoação de Piracuruca
entre os dias 12 e 13 de dezembro. Sem receber qualquer resistência, toma Parnaíba
a 18 de dezembro, uma vez que a maioria dos insurgentes daquela localidade se
retira, estrategicamente, para os domínios da Província do Ceará, por
não se encontrarem suficientemente preparados para o confronto e, ainda, pela
necessidade da busca de apoio, especialmente reforços.
O comandante Fidié
aproveita sua estada no norte para levar a cabo algumas medidas administrativas
e de segurança que julga serem necessárias. Ocorre, porém, que diversos
acontecimentos começam a se precipitar ao longo de toda a Província, de
forma decisiva e irreversível. A 22 de janeiro de 1823, Leonardo Carvalho
Castelo Branco, em retorno do Ceará, toma a povoação de Piracuruca,
proferindo, em frente à Igreja Matriz de
Nossa Senhora do Monte do Carmo, uma histórica e “audaciosa”
declaração de independência. Em Oeiras, dois dias depois, a Junta de
Governo Provisória é derrubada, sob a liderança dos Sousa Martins; a
capital, finalmente, adere à causa separatista. Em 05 de fevereiro é a vez de Campo
Maior aclamar d. Pedro I Imperador do Brasil, sob a
hegemonia, a exemplo da Piracuruca, do valoroso Leonardo Castelo
Branco.
Opondo-se
a todos esses fatos, Fidié toma a decisão de fazer marchar a
tropa de cerca de 1.300 homens contra Oeiras, com o firme propósito de
estabelecer a ordem na Província e confirmar a obediência à Constituição
Portuguesa e a d. João VI. A 1º de março, o contingente luso inicia
o que se revelaria uma fatídica e tortuosa jornada de tentativa de regresso.
Segundo
o historiador Renato Neves Marques, “logo após a sua saída de
Parnaíba, o comandante Fidié, na sua experiência de guerras anteriores,
destacou de sua tropa uma força de 80 homens de cavalaria, sob o comando de
dois oficiais para irem na frente fazendo o reconhecimento do terreno, a fim de
tomar a retaguarda dos independentes”. A respeito do deslocamento das
tropas sob seu comando, a partir da Parnaíba, o próprio Fidié,
em suas memórias, transcritas na obra “Vária fortuna de um soldado português”,
escreve: “[...] e tendo conseguido fazer evacuar a força de mil e tantos
homens que se achava mais próxima, segui esta força, picando-lhe a retaguarda
por cinqüenta e oito léguas, e até o Campo do Jenipapo, perto da Villa de Campo
Maior”.
A
população de Piracuruca, por
aqueles dias, encontra-se guarnecida apenas por um pequeno número de oficiais,
sob o comando do capitão José Francisco de Sousa, grupo esse
remanescente das divisões cearenses que haviam acompanhado Leonardo
Castelo Branco, desde a Villa Distinta e Real de Sobral. Ao
tomar conhecimento da saída de Fidié de Parnaíba com um
grande contingente militar, a modesta guarnição constata, por óbvio, ser
suicídio enfrentar o contingente português. O capitão José Francisco,
alegando motivos de saúde, cuida em se retirar para a Serra da Ibiapaba.
Ante o perigo que se avizinha e sem o necessário comando, o restante da tropa
que ainda se acha aquartelada na povoação acaba por debandar rapidamente.
A
10 de março de 1823, um pequeno grupo de cerca de sessenta homens, em vias de
regresso à Província do Ceará,
provavelmente, para a então Villa Viçosa Real (atual cidade de Viçosa),
encontra-se, por obra das circunstâncias, com o mencionado grupo de
reconhecimento da tropa de Fidié. Ali, ainda em terras de Piracuruca,
na localidade Ilhós de Baixo, cercanias da Lagoa do Jacaré, tem
lugar o primeiro confronto militar envolvendo soldados portugueses e
independentes brasileiros na Província do Piauí. Alguns historiadores
fazem menção ao episódio, embora de forma resumida, citando ocorrências de
baixas, sem dispor de números. Citando Vieira da Silva, o historiador Pereira
da Costa, em sua magistral obra “Cronologia
Histórica do Estado do Piauí”, consigna assim o referido embate:
Prosseguia o major
Fidié a sua marcha sobre Oeiras. Chegando ao Ilhós de Baixo e desejando tomar a
retaguarda dos independentes que havia evacuado Piracuruca, mandou marchar 80
homens de cavalaria com dois oficiais para reconhecer o terreno. No dia 10 de
março, encontrou-se este piquete com uns 40 ou 50 independentes também
montados, com os quais tiveram uma escaramuça junto ao lago Jacaré, sofrendo
estes últimos algumas perdas e ficando da tropa portuguesa um soldado
prisioneiro[1].
Devidamente
cientificado do confronto acontecido à beira da Lagoa do Jacaré, o
comandante Fidié faz sua aproximação da povoação de Piracuruca
com a necessária cautela, mas a toma sem qualquer resistência, uma vez que o
perímetro urbano se encontra saqueado e praticamente abandonado. A tropa
lusitana permanece no local apenas por tempo suficiente a um brevíssimo
descanso. É que a história já acenava para um decisivo encontro, protagonizado
pelo patriotismo de um grupo de nordestinos brasileiros e o dever de fidelidade
e passionalidade de um valoroso chefe militar português e sua tropa. A emblemática
batalha se realiza a 13 de março, tendo como cenário os campos que margeiam o
rio Jenipapo, nas proximidades da Vila
de Campo Maior.
Ao
Embate do Jacaré deverá ser consignada a importância de haver deflagrado,
em campo de batalha, a “Guerra do Fidié”. Ali, o sangue de alguns heróis
anônimos, provavelmente de naturalidade cearense, jorra e se infiltra em solo de
Piracuruca, sagrando o firme ideal brasileiro de construção de uma
pátria livre e soberana, com a unidade territorial e a dimensão geográfica que
conhecemos atualmente. Prelúdio da Batalha do Jenipapo, a escaramuça
piracuruquense – incluindo-se a identificação dos seus personagens – permanece amargando
o desconhecimento da grande maioria dos brasileiros. Por esta razão, o
pitoresco fato, ocorrido em 10 de março de 1823, necessita ser devidamente pesquisado
e difundido, como parte de uma singular epopeia sertaneja, repleta de exemplos
de bravura e patriotismo. No entanto, as tentativas de sensibilizar os gestores
públicos para a causa histórica da Lagoa
do Jacaré ainda não lograram o merecido êxito. Um exemplo de que a história e a
cultura de Piracuruca não se constituem prioridades para seus administradores é
a atenção destinada ao anteprojeto – protocolado junto ao Governo Municipal, em
05 de fevereiro de 2009 – que propõe a criação e implantação de um complexo
arquitetônico e paisagístico no local, composto de parque ambiental e temático,
monumento e memorial, com vistas à preservação dos patrimônios natural e
cultural, bem como à promoção do turismo histórico na região.
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Publicado em:
Jornal Acesso Real, coluna “Calidoscópio
Cultural”, ano I, nº 09, de 16 a 31.03.2008 (primeira versão).
Sítio www.piracuruca.com,
coluna “O Mermorista”, postado em 03.2008 (primeira versão).
Revista PiauíTUR, ano I, nº 02,
novembro de 2009; p. 26-31 (segunda versão).
[1] COSTA, F. A. Pereira da. Cronologia Históricas do Estado do Piauí; p. 303.
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