sábado, 10 de março de 2012

Embate do Jacaré, prelúdio da Batalha do Jenipapo



No processo histórico das lutas pela adesão do Piauí à Independência do Brasil, um fato tem significado ímpar, por estabelecer o marco inaugural do confronto armado, na Província, entre independentes piauienses, cearenses e maranhenses e tropas oficiais e milicianas portuguesas. Esse episódio recebeu de pesquisadores e acadêmicos o título toponímico de “Embate da Lagoa do Jacaré”.
A 19 de outubro de 1822, a então Vila da Parnaíba decide por declarar apoio à independência brasileira, sob as lideranças de Simplício Dias da Silva e João Cândido de Deus e Silva, dentre outros. Quando a notícia chega à capital da Província, Oeiras, a Junta de Governo Provisório delibera pelo envio do Governador das Armas João José da Cunha Fidié, com a missão de sufocar o movimento, imediatamente.
O militar português que carrega, em seu currículo, brilhante participação nas Guerras Napoleônicas, parte de Oeiras a 13 de novembro, à frente de tropas de 1ª e 2ª linhas, composta por cerca de 380 praças, integrantes do 1º Regimento de Cavalaria Auxiliar e do Batalhão de Infantaria da Guarnição da Capital. Além das forças militares, muitos corpos de milícia vão sendo organizados pelo caminho e, ainda, diversos outros são arregimentados junto à contígua Província do Maranhão. Cumprindo o trajeto entre a capital e a Vila sublevada, o contingente luso chega a Campo Maior em 25 de novembro, ali permanecendo alguns dias. Prossegue seu percurso, alcançando a povoação de Piracuruca entre os dias 12 e 13 de dezembro. Sem receber qualquer resistência, toma Parnaíba a 18 de dezembro, uma vez que a maioria dos insurgentes daquela localidade se retira, estrategicamente, para os domínios da Província do Ceará, por não se encontrarem suficientemente preparados para o confronto e, ainda, pela necessidade da busca de apoio, especialmente reforços.
O comandante Fidié aproveita sua estada no norte para levar a cabo algumas medidas administrativas e de segurança que julga serem necessárias. Ocorre, porém, que diversos acontecimentos começam a se precipitar ao longo de toda a Província, de forma decisiva e irreversível. A 22 de janeiro de 1823, Leonardo Carvalho Castelo Branco, em retorno do Ceará, toma a povoação de Piracuruca, proferindo, em frente à Igreja Matriz de Nossa Senhora do Monte do Carmo, uma histórica e “audaciosa” declaração de independência. Em Oeiras, dois dias depois, a Junta de Governo Provisória é derrubada, sob a liderança dos Sousa Martins; a capital, finalmente, adere à causa separatista. Em 05 de fevereiro é a vez de Campo Maior aclamar d. Pedro I Imperador do Brasil, sob a hegemonia, a exemplo da Piracuruca, do valoroso Leonardo Castelo Branco.
Opondo-se a todos esses fatos, Fidié toma a decisão de fazer marchar a tropa de cerca de 1.300 homens contra Oeiras, com o firme propósito de estabelecer a ordem na Província e confirmar a obediência à Constituição Portuguesa e a d. João VI. A 1º de março, o contingente luso inicia o que se revelaria uma fatídica e tortuosa jornada de tentativa de regresso.
Segundo o historiador Renato Neves Marques, “logo após a sua saída de Parnaíba, o comandante Fidié, na sua experiência de guerras anteriores, destacou de sua tropa uma força de 80 homens de cavalaria, sob o comando de dois oficiais para irem na frente fazendo o reconhecimento do terreno, a fim de tomar a retaguarda dos independentes”. A respeito do deslocamento das tropas sob seu comando, a partir da Parnaíba, o próprio Fidié, em suas memórias, transcritas na obra “Vária fortuna de um soldado português”, escreve: “[...] e tendo conseguido fazer evacuar a força de mil e tantos homens que se achava mais próxima, segui esta força, picando-lhe a retaguarda por cinqüenta e oito léguas, e até o Campo do Jenipapo, perto da Villa de Campo Maior”.
A população de Piracuruca, por aqueles dias, encontra-se guarnecida apenas por um pequeno número de oficiais, sob o comando do capitão José Francisco de Sousa, grupo esse remanescente das divisões cearenses que haviam acompanhado Leonardo Castelo Branco, desde a Villa Distinta e Real de Sobral. Ao tomar conhecimento da saída de Fidié de Parnaíba com um grande contingente militar, a modesta guarnição constata, por óbvio, ser suicídio enfrentar o contingente português. O capitão José Francisco, alegando motivos de saúde, cuida em se retirar para a Serra da Ibiapaba. Ante o perigo que se avizinha e sem o necessário comando, o restante da tropa que ainda se acha aquartelada na povoação acaba por debandar rapidamente.
A 10 de março de 1823, um pequeno grupo de cerca de sessenta homens, em vias de regresso à Província do Ceará, provavelmente, para a então Villa Viçosa Real (atual cidade de Viçosa), encontra-se, por obra das circunstâncias, com o mencionado grupo de reconhecimento da tropa de Fidié. Ali, ainda em terras de Piracuruca, na localidade Ilhós de Baixo, cercanias da Lagoa do Jacaré, tem lugar o primeiro confronto militar envolvendo soldados portugueses e independentes brasileiros na Província do Piauí. Alguns historiadores fazem menção ao episódio, embora de forma resumida, citando ocorrências de baixas, sem dispor de números. Citando Vieira da Silva, o historiador Pereira da Costa, em sua magistral obra “Cronologia Histórica do Estado do Piauí”, consigna assim o referido embate:
Prosseguia o major Fidié a sua marcha sobre Oeiras. Chegando ao Ilhós de Baixo e desejando tomar a retaguarda dos independentes que havia evacuado Piracuruca, mandou marchar 80 homens de cavalaria com dois oficiais para reconhecer o terreno. No dia 10 de março, encontrou-se este piquete com uns 40 ou 50 independentes também montados, com os quais tiveram uma escaramuça junto ao lago Jacaré, sofrendo estes últimos algumas perdas e ficando da tropa portuguesa um soldado prisioneiro[1].
Devidamente cientificado do confronto acontecido à beira da Lagoa do Jacaré, o comandante Fidié faz sua aproximação da povoação de Piracuruca com a necessária cautela, mas a toma sem qualquer resistência, uma vez que o perímetro urbano se encontra saqueado e praticamente abandonado. A tropa lusitana permanece no local apenas por tempo suficiente a um brevíssimo descanso. É que a história já acenava para um decisivo encontro, protagonizado pelo patriotismo de um grupo de nordestinos brasileiros e o dever de fidelidade e passionalidade de um valoroso chefe militar português e sua tropa. A emblemática batalha se realiza a 13 de março, tendo como cenário os campos que margeiam o rio Jenipapo, nas proximidades da Vila de Campo Maior.
Ao Embate do Jacaré deverá ser consignada a importância de haver deflagrado, em campo de batalha, a “Guerra do Fidié”. Ali, o sangue de alguns heróis anônimos, provavelmente de naturalidade cearense, jorra e se infiltra em solo de Piracuruca, sagrando o firme ideal brasileiro de construção de uma pátria livre e soberana, com a unidade territorial e a dimensão geográfica que conhecemos atualmente. Prelúdio da Batalha do Jenipapo, a escaramuça piracuruquense – incluindo-se a identificação dos seus personagens – permanece amargando o desconhecimento da grande maioria dos brasileiros. Por esta razão, o pitoresco fato, ocorrido em 10 de março de 1823, necessita ser devidamente pesquisado e difundido, como parte de uma singular epopeia sertaneja, repleta de exemplos de bravura e patriotismo. No entanto, as tentativas de sensibilizar os gestores públicos para a causa histórica da Lagoa do Jacaré ainda não lograram o merecido êxito. Um exemplo de que a história e a cultura de Piracuruca não se constituem prioridades para seus administradores é a atenção destinada ao anteprojeto – protocolado junto ao Governo Municipal, em 05 de fevereiro de 2009 – que propõe a criação e implantação de um complexo arquitetônico e paisagístico no local, composto de parque ambiental e temático, monumento e memorial, com vistas à preservação dos patrimônios natural e cultural, bem como à promoção do turismo histórico na região.         

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Publicado em:

Jornal Acesso Real, coluna “Calidoscópio Cultural”, ano I, nº 09, de 16 a 31.03.2008 (primeira versão).

Sítio www.piracuruca.com, coluna “O Mermorista”, postado em 03.2008 (primeira versão).

Revista PiauíTUR, ano I, nº 02, novembro de 2009; p. 26-31 (segunda versão).




[1] COSTA, F. A. Pereira da. Cronologia Históricas do Estado do Piauí; p. 303.



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