Passam cerca
de trinta minutos do meio-dia de segunda-feira, 19 de novembro de 1923. A
plataforma de embarque e desembarque da recém-construída Estação Ferroviária de Piracuruca se acha prestigiada por dezenas de
autoridades locais e regionais e completamente tomada pela população em geral. Finalmente,
faz-se ouvir o apito do trem, ainda distante. Pouco tempo depois do primeiro
aviso outro se segue... E eis que surge a “maria-fumaça”,
encabeçando o conjunto de vagões, repletos de convidados ilustres - parnaibanos em
sua maioria - para a inauguração do serviço regular da estrada de ferro. Esse é
um momento ímpar na história piracuruquense, em face da grande esperança de progresso
para a plaga abençoada pela Virgem do Monte
do Carmo e circunvizinhanças.
A tradição
oral, alguns registros documentais primários e alusões de cronistas da época
atestam que o fato se constitui em um grande acontecimento para a cidade. Em
meio a discursos, palmas e foguetórios, a “Lyra
Senador Gervásio”anima os presentes à gare piracuruquense, executando inúmeras
peças de dobrados, valsas e tangos. À noite, um pomposo baile é oferecido aos
visitantes, no Palácio da Intendência
Municipal, sob a coordenação de uma comissão, especialmente composta para a
ocasião.
O
processo da construção da estrada, no entanto, não havia se revelado tarefa
fácil. Mais de meio século de expectativas e lutas são transcorridos, desde as
primeiras iniciativas até aquela importante data. A pretensão tem sua nascença
ainda no Período Imperial, quando o presidente da Província do Piauhy, consoante o Decreto
nº 77, datado de 26 de maio de 1871, autoriza os Srs. José Maria Barnes,
Francisco Gano Gulick, Joaquim Coelho Fragoso“[...] ou a quem mais vantagens oferecesse, a construção de uma estrada
de ferro que, saindo da Villa da Amarração chegasse à Parnahyba”. O projeto inicial
tem o objetivo de viabilizar o transporte de passageiros e cargas entre as duas
localidades, atendendo as necessidades do tão aspirado Porto de Luis Correia.
Data
de 1905 os primeiros estudos técnicos da futura via férrea. Somente em 1911,
porém,é celebrado contrato com a empresa South
American RailwayConstrution Ltda. e adquiridos equipamentos para a execução
do primeiro trecho. Após diversas altercações e atrasos, a etapa é concluída
cinco anos mais tarde, sob a chefia do engenheiro civil Miguel Furtado Bacellar
(1875-1952). O plano original da artéria sofre diversas modificações, sendo a
mais importante o seu prolongamento até Campo
Maior, daí prosseguindo até Altos,
para interligar-se, por fim, ao trecho Teresina-Oiticica.
No entanto, as obras, em seus diversos trechos, arrastam-se lentamente,
conforme atestam as datas de inaugurações das estações e início dos serviços
regulares: Amarração e Parnaíba, 19 de novembro de 1916; Cocal, 01 de maio de 1922; Deserto e Piracuruca, 19 de novembro de 1923; Brasileira e Piripiri, 13
de fevereiro de 1937; Campo Maior, 30
de dezembro de 1952; Altos, 01 de
novembro de 1965.
No
campo político, inúmeras são as batalhas travadas pelos piauienses para a
superação dos difíceis obstáculos. No front
dessas lutas, destaca-se o coronel Gervásio de Britto Passos (1837-1923),
nelas desempenhando papel fundamental. Desde o início de seu mandato de senador
da República, em 1908, Gervásio intensifica gestões junto ao Congresso e ao Governo Federal para viabilizar os projetos, valendo-se de seu grande
prestígio pessoal e da vasta experiência pública. Com o afastamento do ilustre piracuruquense
dos cargos eletivos, no final de 1915, prosseguem os esforços, tendo à frente o
engenheiro e deputado federal piripiriense José Pires Rebêlo (1877-1947), dentre
outros. Em sessão plenária da Câmara de
Deputados, Pires Rebêlo pronuncia: “Se
o progresso de um país ou de um Estado se mede pelo desenvolvimento e extensão
de suas linhas férreas, claro é concluir que o Piauí seria o Estado mais
atrasado da Federação. Contra isso, entretanto, a minha voz há de se fazer
sempre ouvir neste recinto”.
Na
esfera administrativa, a via férrea do norte piauiense está vinculada à Rede de Viação Cearense (RVC), desde a
sua concepção até o ano de 1920, quando passa a ter gestão própria, recebendo a
denominação de Estrada de Ferro Central
do Piauhy (EFCP). Em 15 de abril de 1942, a Companhia é incorporada à Estrada de Ferro São Luis-Teresina (EFSLT). Em
conformidade com o Decreto Lei nº
9.774/46, de 06 de setembro de 1946, a autarquia volta a ter autonomia, a partir
de janeiro de 1947. A Rede Ferroviária
Federal S. A. (RFFSA) é criada em
16 de março de 1957, consoante Decreto
Lei nº 3.115/57, reunindo 22 companhias férreas brasileiras, dentre as
quais a do Piauí. A RFFSA entra em operação
a partir de setembro do mesmo ano.
Verificando o
processo de concepção, implantação e funcionamento da ferrovia que corta o
território centro-norte piauiense – conector da região com os estados do Ceará e Maranhão – tem-se uma dimensão da visão de futuro lobrigada por
diversas personalidades - seja do ponto de vista técnico, seja no campo
político - incluindo-se, dentre os quais, Miguel Furtado Bacellar, Gervásio de
Britto Passos e José Pires Rebêlo. Por sobre os seus trilhos e dormentes,
durante mais de sete décadas, são transportados os bens econômicos mais
importantes produzidos na região, à época: gado, cêra-de-carnaúba, couro, tucum,
babaçu, gêneros de primeira necessidade e outros. Em seus vagões de passageiros circulam
pessoas e idéias que vão transformar a sociedade da época. Em contrapartida aos
produtos exportados, as estações ferroviárias tornam-se receptáculos de novos
modelos, valores, costumes e hábitos de consumo dos centros mais desenvolvidos,
absorvidos e incorporados pelas populações locais.
Alguns
fatores, no entanto, contribuem para que a artéria férrea do norte piauiense
perca, gradativamente, sua importância estratégica: o equívoco da política desenvolvimentista
brasileira de priorizar o transporte por meio de rodovias; a não conclusão do
porto marítimo de Luis Correia; e a
queda acentuada na comercialização de alguns produtosda região junto aos
mercados nacional e internacional, caso da cera de carnaúba.
O
desinteresse político e econômico pela estrada de ferro traz, em seu bojo, a
falta de recursos para investimentos e manutenção, dando início a uma longa
agonia.A crise tem seu desfecho definitivo com a inatividade da linha, ocorrida
entre o final da década de setenta, quando o transporte de passageiros deixa de
operar, e início da década de noventa, com a paralisação total do transporte de
cargas. Em consequência da desativação, os imóveis de propriedade da RFFSA ficam
relegados ao abandono, incluindo-se a Estação
da Piracuruca. Monumento inconteste dos tempos áureos da economia local, o
prédio mergulha em longos anos de ostracismo e completo descaso. Goteiras se
multiplicam nos sucessivos invernos; colônias vorazes de cupins aniquilam as
estruturas de madeira do teto; o comprometimento da estrutura do prédio é apenas
uma questão de tempo, face ao concurso depredatório de vândalos, que insistem em
consumar o serviço nefasto. É dessa forma que a velha construção, festivamente inaugurada
em finais de 1923, transforma-se, praticamente, em ruína.
O
estado deplorável em que o prédio da Estação
Ferroviária de Piracuruca se encontra, nos primeiros anos do século XXI,
denuncia, com absoluta clareza, o nível de descaso da sociedade local para com os
seus bens históricos e culturais. Ao tempo em que a velha gare piracuruquense agoniza, suas
similares, em cidades vizinhas, têm melhor sorte. As construções, em sua maioria,
são recuperadas e recebem novos usos: a Estação
daParnaíba transforma-se no “Museu do
Trem do Piauí”, acolhendo, ainda, diversos órgãos públicos municipais,
dentre os quais a Secretaria de Educação;
a do jovem município de Bom Princípio
abriga a Câmara Municipal; a de Cocal da Estação é ocupada pela Secretaria Municipal de Cultura; a de Piripiri, privilegiada pela ampla estrutura
física, além de receber a Secretaria Municipal
de Cultura, transforma-se, também, em importante espaço para a realização
de eventos culturais; a de Campo Maior dá
abrigo a um museu particular.
Apesar
das graves agressões sofridas por cerca de trinta anos, vítima do absoluto
descaso de gestores públicos e da incompreensível ausência de reação da população
local, o combalido prédio da Estação
Ferroviária de Piracuruca recebe, finalmente, um novo alento. Alguns
setores da sociedade civil piracuruquense despertam para a iminente sucumbência
do prédio e decidem realizar uma mobilização providencial: a situação é
denunciada em artigos na imprensa; uma campanha pró-recuperação é deflagrada em sítio
da internet; membros da comunidade acadêmica explicitam, em seus projetos e
seminários, a aguda conjuntura; outros indivíduos e grupos se manifestam, oficial
e extra-oficialmente, cobrando ações do aparelho estatal.
Diante
dos apelos formulados, o Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) finalmente entra no
circuito, de forma providencial. Na segunda metade de 2008, o órgão realiza uma
pequena obra, visando conter as depredações. Em ato contínuo, são iniciados, no
início de 2009, os serviços visando à restauração arquitetônica, recuperação das
instalações e paisagismo do entorno do prédio. A execução do projeto é confiada
à empresa Bissetriz Projeto e Construções
Ltda., com orçamentação inicial prevista em R$ 114.092,54 (cento e catorze
mil, noventa e dois reais e cinquenta e quatro centavos).
Ultimados
os serviços, o prédio é cedido, em regime de comodato, a entidade
piracuruquense do terceiro setor. Em 27 de novembro de 2009, em cerimônia
simples, os gestores do IPHAN no Piauí fazem a entrega das chaves aos representantes
da Associação de Pais e Amigos de Excepcionais (APAE), sob o compromisso de ali
serem desenvolvidas iniciativas nos campos educacional e cultural. Bem distinta da
efusiva e histórica festividade de 19 de novembro de 1923, o ato representa, no
entanto, o restabelecimento do necessário compromisso público para com o patrimônio
material da emblemática Estação
Ferroviária dePiracuruca. Mais que isso: faz reluzir fagulhas de esperança de
que esse importante “lugar de memória”
prossiga existindo, não apenas como monumento alusivo a um singular período da história
econômica e social local, mas, agora, também como “ponto de cultura”, capacitado a acolher diversas atividades no tempo
presente e, espera-se, por um longo futuro.
Não
obstante os trabalhos de reabilitação da velha Estação, outros elementos que integram o conjunto do patrimônio histórico
e cultural da Piracuruca carecem,
também, de urgentes atenção e providências. Entre os bens materiais, incluem-se os
casarios relativos aos períodos colonial e ciclo da cera de carnaúba, bem como o que
resta do acervo documental primário (registros civis, administrativos e
eclesiásticos), necessitando urgentes tombamento, recuperação e preservação. Dentre
os imateriais, relacionam-se: tradições, folclore, costumes, atos e fatos
históricos, personagens e personalidades, estórias populares. Todos esses
elementos precisam ser reavivados, documentados, mantidos e divulgados. Alerte-se
que o patrimônio sob comento consubstancia a herança de várias gerações, acervo
que registra a trajetória da civilização piracuruquense, sua memória, sua identidade.
Em face da relevância que se reveste o assunto, cabe aduzir aos indivíduos e
instituições políticos – aqueles que se propugnam representar os interesses do
povo - que as ações de apoio, incentivo, valorização e difusão de manifestações
culturais são direitos da sociedade, consolidados pela Constituição Federal, e,
por conseguinte,deveres positivos do Estado.
Parabéns pelo blog este certamente será um espaço de grande valor para todos aqueles amantes da história....
ResponderExcluirAgradeço pelas palavras gentis e pelo incentivo.
ExcluirDe fato, esse é o objetivo dessa singela, porém irradiadora, ferramenta midiática: promover o conhecimento histórico, literário e cultural de nossa terra e nossa gente.
Um abraço conterrâneo aos getores do ADM Piracuruca.